quinta-feira, 8 de julho de 2010

ENSAIO: Entre coreanos e bolivianos

São Paulo, domingo, 13 de junho de 2010


O destino paulistano de Lombroso
resumo
Teórico da antropologia criminal do século 19, Cesare
Lombroso (1835-1909) viu na miscigenação e nos traços não
europeus sinais de delinquência e pendor para o crime. Hoje
quase esquecido, ironicamente dá seu nome a um shopping
popular no Bom Retiro, um dos bairros paulistanos mais
marcados pela mistura de raças.
LILIA M. SCHWARCZ
Quem chega ao bairro paulistano do Bom Retiro e dá de cara
com um novo e vistoso shopping não suspeita que ele se
chame Lombroso Fashion Mall. A pátina do tempo e a rotina
do dia a dia fizeram com que o nome deixasse de causar
qualquer estranhamento, até porque o complexo de lojas está
localizado na rua Cesare, em versão reduzida na placa de
esquina; Cesare Lombroso, para aqueles que gostam de
nomes completos. Nada que nossa vã filosofia ocidental não
explique, entenda ou naturalize.
Na propaganda, que faz o gosto da clientela local, anuncia-se
que ali está "o melhor do Bom Retiro", e não é para menos.
Há um pouco de tudo: moda feminina e masculina, moda
criança, moda evangélica, moda festa, moda para
avantajados (como define o manual dos bons modos
politicamente corretos, que troca seis por meia dúzia), lojas
de informática, de artigos esportivos, de calçados, joalherias
e bijuterias, e, como não poderia faltar, uma ampla praça de
alimentação; costume que já faz parte do cotidiano daqueles
que procuram esse tipo de diversão consumista. Enquanto o
bolso paga caro, a alma se alimenta, e dá-se um jeito de
redimir qualquer culpa causada por excesso pecuniário.
ARREPIO Mas como disse Dostoiévski, em "O Idiota",
"tem coisa que não cabe nas palavras" e, nesse caso, dá um
certo arrepio ligar o nome da criatura ao que acontece nesse
templo dos gastos locais. De um lado, um edifício pronto
para receber uma população híbrida em sua origem e gostos.
De outro, um cientista que ficou famoso em finais do século
19 por causa de suas teses de determinismo racial, e por
liderar a escola de antropologia criminal italiana, que não só
manteria a fama até os anos 1930 como viraria adjetivo: ser
chamado de lombrosiano não era, com certeza, um bom
alvitre.
Cesare Lombroso não é, pois, nome de um tio simpático, ou
de um parente italiano distante, que teria enriquecido por
conta do café; aquele que fez a fortuna de São Paulo a partir
dos anos 1870. A data coincide, mas a situação é das mais
diversas.
Lombroso nasceu no seio de uma família abastada de
Verona, em 1835, e se dedicou à carreira de médico:
frequentou, primeiramente, a Universidade de Pavia e depois
a de cirurgia em Gênova. Em seguida, se voltaria para a
nascente ciência da loucura e, não por coincidência, faria
parte das rodas de Viena do "fin de siècle". Não por acaso,
também, selecionaria a psiquiatria como campo de atuação e
advogaria a tese de que o meio determina a mente.
PRIMAZIA DA RAÇA Dos estudos sobre loucura
Lombroso passaria aos de higiene e se lançaria a uma nova
área, a medicina legal, pautada pela noção da primazia da
raça sobre o indivíduo.
"Ninguém escapa aos limites de sua raça", diria ele,
anunciando uma nova perspectiva para a ciência da época,
em que a regra era a prevenção. Em 1876, Lombroso publica
o livro que lhe traz renome mundial -"O Homem
Delinquente" [Ícone Editora]- e se transforma, por conta de
suas teses na área do atavismo e da frenologia, em grande
personalidade científica.
Criada pelo físico alemão Joseph Gall e também conhecida
como carecteologia ou fisiognomia, a frenologia partia da
certeza de que características atávicas "exteriores"
corresponderiam a espelhos de aspectos invisíveis e
"interiores". Ou seja, estigmas físicos e morais poderiam
indicar, com precisão, traços de delinquência e loucura,
presentes ou futuros.
Assim, sinais como a linha solitária na palma da mão,
insensibilidade à dor, pederastia, epilepsia, mas também
orelhas de abano, testas altas e lábios grossos seriam
evidências de um corpo em desequilíbrio e degeneração. E
pasmem os modernos que frequentam o shopping Lombroso:
para o cientista, as tatuagens representavam prova inconteste
de perturbação mental.
No entanto, segundo tal teoria, pior do que raças "puras" (as
inferiores, no caso) eram as mestiçadas. Na opinião de
Lombroso, a mistura de povos diversos levava sempre a
"produtos falidos, decaídos e imprestáveis".
E o antropologista seria logo convertido em pensador dileto
do final do 19, uma vez que, naquela era das certezas,
oferecia a melhor das utopias: prender o criminoso antes que
ele imaginasse praticar o ato. Dizem que cada momento tem
a utopia que merece e, nesse caso, a redenção significava
erradicar o mal antes que ele ousasse se apresentar.
Cesare Lombroso faria vários seguidores em sua terra -como
Enrico Ferri, renomado criminologista italiano, que esteve
no Brasil em 1908 e causou furor-, mas também aqui nos
trópicos. Um dos mais conhecidos foi Nina Rodrigues
(1862-1906), médico da escola baiana que se devotou
igualmente a estudos de loucura e criminologia. É dele a
máxima de que era "melhor esquecer a doença e atentar para
o doente": o mestiço. Isso num país como o Brasil, a essas
alturas definitivamente misturado e doente, pelo menos para
Nina Rodrigues.
DOIS CÓDIGOS Não é fato de somenos importância Nina
Rodrigues publicar, no contexto da abolição da escravidão,
um opúsculo chamado "As raças humanas e a
responsabilidade penal" (1894), em que propunha a
existência de dois códigos civis: um para brancos e outro
para negros. É dele também o ensaio "Mestiçagem,
degenerescência e crime" (1899), o qual, dedicado ao mestre
italiano, mostrava como povos híbridos não escapavam,
mesmo que tentassem, da "degeneração".
O médico ilustrou sua tese com o exemplo de uma família,
devidamente selecionada em Serrinha, no interior da Bahia, e
o resultado da mistura (segundo o cientista) surgia
indiscutível: o pai ébrio, a mãe epiléptica, um filho tatuado,
outro gago, outro com mania de ler poemas nas algibeiras e
ainda uma filha portando síndrome de solteirona. A
conclusão era radical: não se escapava aos desígnios da
natureza.
No Brasil, tais teorias não poderiam ser mais avassaladoras.
Numa época em que a República exaltava a cidadania, as
teorias científicas transformavam igualdade em balela e
livre-arbítrio em subjetividade filosófica.
RAÇAS E PENDORES Nina Rodrigues, por sua vez,
tentaria interferir no Código Penal de 1894 opondo-se ao
jusnaturalismo, ou seja, ao princípio da universalidade do
corpo de leis. "Os homens não nascem iguais", disse ele.
"Esse é um suposto dos homens de direito pois sem ele não
haveria leis; mas nós, homens de ciência, bem o sabemos: os
homens são profundamente diferentes em suas raças e
pendores."
Interessante é que não só Lombroso virou shopping, como
Nina Rodrigues transformou-se em rua e praça de São Paulo.
A homenagem está localizada no bairro da Liberdade, e lá se
abrigam o Ministério do Trabalho e do Emprego, o Instituto
Nacional do Seguro Social, a Companhia de Engenharia de
Tráfego e, "last but not least", o Banco do Brasil. Para um
cientista que tentou controlar as populações e pensou a
sociedade como um laboratório racial, nada mais
representativo do que esse conjunto robusto de instituições.
Mas voltemos ao nosso shopping. É fácil imaginar
Lombroso passeando por lá e analisando, pesaroso, tanta
mestiçagem reunida em um só espaço. Com certeza,
estudando as características somáticas da clientela, o
cientista se depararia com vários futuros criminosos e
tentaria evitar que a sociedade sofresse com tantos males.
COREANOS E BOLIVIANOS Afinal, por lá passeiam
clientes com cores e feições orientais, negras, brancas,
mestiças; sem esquecer da febre de consumo, também
considerada estigma grave de degeneração. O Bom Retiro,
que nasceu como um bairro de imigração judaica, passou a
ser habitado por coreanos e depois bolivianos -o que, para
nosso pensador determinista, não cheiraria nada bem. Nosso
homenageado, quem sabe, teria feito a festa, seguindo a
máxima de que prevenir era muito melhor do que remediar.
Talvez fizesse bom uso de seu livro de 1899, "Crimes, Suas
Causas e Soluções", em que mostrou, de maneira definitiva,
que diante de uma causa -a mestiçagem- só havia uma
solução: o confinamento, a esterilização, o impedimento.
E digamos que o cientista se animasse a dar um pulo na
Liberdade, para verificar, com seu admirador longínquo
Nina Rodrigues, como a vizinhança acabou tintada pela
imigração japonesa também pouco recomendada por ambos,
que ajuizavam que o futuro de qualquer país civilizado só
poderia ser branco, ou seja, europeu.
Melhor viver a ignorância dos crédulos e esquecer de dar
nome (e sentido) aos bois, às ruas e aos shoppings.
Lombroso poderia ser mesmo um retrato de um parente
bondoso esquecido na parede. Como dizia Humpty Dumpty,
famoso personagem de Lewis Carroll, "aquele que procura
por nomes e rótulos na maioria das vezes se engana ou
encontra um mau caminho".

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